domingo, 12 de maio de 2013

Eu não quero morrer... II



Agarrou-me com força a mão, e senti-lhe nos dedos, o horror de me perder.
-- O que se passa mãe? Porque estás a chorar?
-- Não é nada filha. -- respondeu limpando à pressa as lágrimas, trocando-as por um grande sorriso. -- Foi o Sol. Não te preocupes, sim?
Acenei ligeiramente com a cabeça, enquanto a minha mãe tentava manter aquele sorriso estranho.
-- Daqui a pouco estamos em casa! -- sorriu, soltando uma lágrima.

Passou-me a mão pela cabeça. Trémula. Dos megaphones, suou a voz víbora, que todos em meu redor escutaram com toda a tenção. Pareciam tensos, muito concentrados à medida que os senhores fardados percorriam aquele longo amontoado de pessoas, com paus e pistolas compridas. A minha mãe apertou-me com força, à medida que lhe sentia o olhar ficar mais pesado e repleto de medo, foi então que um senhor à minha frente levou com um pau na cabeça. Assustei-me, encolhi-me. Senti-lhe a dor na voz. Ao meu lado, agarrado às saias da sua mãe, estava uma criança muito pequenina, com pouco mais de 6 anos, a chorar. Soluçava com o medo estampado no rosto, nos olhos, nas mãos pequeninas que seguravam com força a única pessoa que lhe poderia dar protecção, carinho, compreensão, alimento.

Tão rápido como todos nos tínhamos encarcerado, afastámos-nos. Apertando com força a minha mão, mantendo-me sempre com ela, colada, levou-me. Colocaram-nos numa fila só para mulheres e crianças. Havia rapazes mais velhos com olhares sérios mas com uma expressão irreconhecível. Talvez medo... disfarçado de coragem. Olhei para trás, para a fila serpenteante, e vi uma senhora dar um bocadinho de pão às escondidas, a uma criança.
Olhava para a minha mãe de vez em quando, mas ela não desviava a sua atenção da mesa que recebia as pessoas, para outros pais, para outras crianças, para outras mães, e a sua expressão séria, confundia-se com a de dor, com a mesma expressão de incapacidade. Os seus dois cristais, largavam lágrimas que lhe percorriam a face, o nariz, o queixo e que caiam no meu cabelo ou no meu vestido. Depois de várias dezenas de minutos à espera, sem água, sem comida, e ao sol intenso, chegara finalmente a nossa vez. A situação nova, não me recordava as filas de espera para o comboio, para o dentista ou para a casa de banho. Havia demasiado no meu horizonte que me causava desconforto. Eu própria desconhecia se compreendia o que estava a acontecer. Não existem histórias tão horrendas, como aquela em que se tornou a minha vida, como aquela que estava presente a assistir. O silêncio de todo aquele grupo de pessoas, desfazia-se com a voz vibrante dos soldados.

Chegámos-nos à frente e entregou os papeis de identificação. Olhava para ela, que não limpava as lágrimas, e para o senhor do qual não entendia a língua. Escreveu qualquer coisa numa folha já meia preenchida, com estranhos traços, falou para minha mãe que acenou a cabeça e me levou de novo para outro local desconhecido. O senhor levantou o olhar, e com raiva mandou que o próximo se aproxima-se. Não foi preciso entender. Os seus gestos curtos e brutos demonstravam violência, ordens que nem eu própria me atreveria a desobedecer. Lembrei-me do papá, quando ele costumava ficar zangado comigo por deixar as bonecas espalhadas pelo chão da sala.
-- Quero que te mantenhas com a mamã. Vai correr tudo bem. Não precisas de ficar assustada. -- senti na voz da mãe, um aperto, um arfar, uma dificuldade em respirar. Estava com medo. O que se passa? Foi alguma coisa que eu fiz? O que fizeram estes senhores ou aquelas crianças para estar aqui? O que fez de mal aquele homem para levar com um pau na cabeça? O que querem de nós? Porque fazem isto? O que está a acontecer?
Seguimos em frente, onde vi o que me arrepiou o corpo. Um senhor fardado, que estava parado de arma na mão, caminhou até a um rapazito que trazia um pequeno brinquedo nas mãos. Assustado, olhou para o senhor, muito branco e de cabelo rapado, jovem e com cara carinhosa...ZÁS! Com uma chapada nas mãos, tirou-lhe o brinquedo, gritando de seguida ao seu ouvido. A minha mãe tremeu, cessando o passo por momentos, e a dele, puxou-o para si, passando-o para o seu lado esquerdo. Tive um suor frio pela espinha a baixo. Sentia a mesma mão pesada nos meus neurónios espelho. Chorei. O monstro aproximou a sua cara da minha. Cheirei-lhe o mesmo hálito bêbado que tanto decorei da boca do meu pai, sempre que me dava as boas noites, e com um grande aperto na cara, encolhi-me entre as roupas daquela mulher que me obrigava a acompanhar as suas largas passadas, apressadas, pesadas e breves num chão sem vida. Morto.
Por trás da vedação, começavam a surgir edifícios de betão, baixos, feios, grosseiros, assustadores e intimidantes. Vapor saía de umas chaminés, e por breves momentos, a mão da minha mãe perdeu as forças.

O problema deste lugar, é que eu sou daqui...

Eu não quero morrer... III

Question: "At Auschwitz, tell me, where was God?"
Answer: "Where was man?"
William Styron em Sophie's Choise

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