sexta-feira, 10 de maio de 2013

Eu não quero morrer...


O ambiente estava pesado, ninguém falava. Entre os tambores que ressoavam na locomotiva lá mais ao fundo e do metal que rangia com a fúria da velocidade, do peso da sua carga, ouvia-se a tosse e os espirros de caras fantasma. O choro das crianças e os gritos já quase roucos dos bebés esfomeados. Cada vagão compunha em conjunto, uma melodia mecânica, continua e cadenciada. Parecia um galopar. Através de uma pequena fresta naquele contentor de metal, podia adivinhar quando se aproximava a próxima curva apertada, ou o próximo solavanco através das pedras que batiam por baixo dos nossos pés. Espalhava-se por aquele espaço apertado, o cheiro à urina, ao suor, ao sujo. Um odor forte que não conseguia sair, tornando-se a pouco e pouco, reciclado pelos pulmões de quase uma centena de pessoas esfomeadas, cansadas, doridas, ensardinhadas, defuntas.
A luz iluminava tão pouco aquele interior já tão fechado, que até a luz do sol parecia ter sido economizada para nós.
Através do peso que se apertava e caia sobre mim, senti o comboio travar durante vários metros. No meio dos sons a vapor, de cães a latir e de um chiar estridente, ouvi indistintamente o que me parecia ser um homem a falar. A travagem seguinte foi brusca e todas as pessoas que seguiam naquela besta de metal, comprida e esguia, gritaram numa cacofonia que pareciam pequenos murmúrios. No seu folgo breve, sentiu-se o medo. Ficámos parados, trancados por breves segundos, enquanto várias vozes se aproximavam. Senti uma risada forte do outro lado da chapa. Destrancaram os portões, correram-nos e afastaram-se da imundice ensopada. Agarrei com força a mão da minha mãe e olhei para ela.
-- Não tenhas medo filha, vai correr tudo bem. Está tudo bem. Em breve estaremos em casa.

Um raio de sol bateu-me na cara, e senti o seu calor, senti a paz e o sossego que me faziam recuar no tempo. Estava na casa do campo, a brincar na relva verde com o meu cão "Puffy". Lembrava-me do vestido vermelho e daquele laço tão boni...
Puxaram-me pelo pequeno braço enquanto absorvia um grito gutural junto à minha cabeça. Saltei da carruagem e fizeram-nos alinhar em frente a centenas de homens fardados, grande maioria sentados, a rirem-se e a beber. Estavam à espera de nós. Olhavam-nos com gonzo, tocando nos corpos das mulheres como se fossem suas esposas. Estavam bêbados, contentes e com muita raiva nos seus rostos.
Senti na barriga, um desconforto, uma azia que me subiu pela garganta, à medida que via serem descarregadas, de malas e filhos nas mãos, mulheres e crianças, recebidas à chapada e ao ponta-pé, pelos senhores de língua feia.
A minha mãe levava-me pela mão, carregando na outra a malinha pequena que tinha preparado em casa antes de sairmos com a policia e sermos levados até estes comboios que não tinham destino, mas um fim. Olhei para ela. Preocupada, assustada e cheia de dor, do que quer que estivesse a testemunhar à altura dos seus olhos. Os encontrões tornaram-se frequentes até ao ponto de mais ninguém se conseguir mexer. Estava espezinhada e entornicada às pernas dela, que num momento violento e confuso como aquele, se mantinham suaves, lisas e com cheirinho a sabonete de perfume. Agarrou-me com força a mão, e senti-lhe nos dedos, o horror de me perder.
-- O que se passa mãe? Porque estás a chorar?
-- Não é nada filha. -- respondeu limpando à pressa as lágrimas, trocando-as por um grande sorriso. -- Foi o Sol. Não te preocupes, sim?
Acenei ligeiramente com a cabeça, enquanto a minha mãe tentava manter aquele sorriso estranho.
-- Daqui a pouco estamos em casa! -- sorriu, soltando uma lágrima.


Eu não quero um fim... quero o meu final.

Eu não quero morrer... II


2 comentários:

  1. A caminho do holocausto?? Que final? Nós sabemos...é terrivelmente verdadeiro mas, na nossa imaginação podemos dar-lhe um outro final..não diria feliz mas, mais humano.
    Gostei do modo como escreves e...por isso, fiquei.
    Abraço
    Graça

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    Respostas
    1. Obrigado.
      Não a caminho, mas no holocausto.
      Fique, vai ter continuação. ^^

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